domingo, 30 de outubro de 2016

Laços apodrecidos e a vida pelas ruas

Uma imagem da comunidade humana
  Um fenômeno presente nas principais metrópoles é o das Pessoas em Situação de Rua, que são caracterizados como pessoas sem uma moradia convencional, de vínculos familiares rompidos ou fragilizados, de laço comunitário enfraquecido e de extrema vulnerabilidade social.
  Em uma cidade como Campinas-SP é fácil pelas ruas do centro se deparar com uma pessoa deitada em alguma escadaria ou nas "barracas de papelão e lona" encontrar com um ser humano passando por essa situação.
 Trabalhando há 2 anos com esse segmento na política pública de assistência social, desenvolvi uma visão acerca dessa problemática e procuro nesse texto compartilhar com as pessoas que tem a necessidade de embasar suas reflexões acerca de um assunto delicado e que requer delicadeza no trato.
  Há duas dimensões para se pensar a questão, sendo a primeira superestrutural, que se refere a forma como a sociedade se organiza, o sistema econômico e social, a cultura colonial que somos herdeiros, o senso de comunidade fragilizado e o capitalismo de forma geral; em um segundo momento há questões infraestruturais, que reflete aspectos da vida diária, da própria subjetividade do sujeito e dos relacionamentos. Ambas dimensões existem de uma maneira dialética, uma alimentando e construindo a outra, sem poder dissociá-las na reflexão.
  O sujeito observado andando pelas ruas do centro de Campinas revela elementos "cruéis" de uma sociedade capitalista, onde o direito à uma vida digna é apenas discurso de campanha eleitoral e no calendário da agenda política se sobrepõe a lógica do lucro. Também observa-se a ausência do direito à moradia e o direito ao trabalho e renda, ainda mais em tempos de crise econômica em que o sistema dá indícios de seu esgotamento e acalora ações de caráter higienista e desumano. Não mais importante, o fato de existir uma pessoa dormindo na calçada expõe que não há comunidade no seu entorno, no máximo um agrupamento de indivíduos também lutando por sua sobrevivência e ignorando o fato que compartilham junto com o morador de rua da fragilidade de laços comunitários.
 A forma como nos relacionamos cotidianamente e edificamos essa sociedade, são as bases para a miséria e a vulnerabilidade que a humanidade enfrenta. Visualizar no outro apenas o meio para a satisfação dos nosso desejos; desconsiderar a convivência como criadora/mantenedora de saúde mental; viver (será?) no individualismo, imediatismo e puro materialismo; e a falta de diálogo, são ingredientes necessários para a pauperização de nossa existência.
 As pessoas que fazem da marquise a sua casa, são expressões de uma polis doente, onde o amor de conviver e se preocupar com o outro é secundário. Talvez por isso, brota o comportamento do abuso de álcool e outras drogas na rua, para se anestesiar do organismo doentio e esquecer que faz parte dele.
 Em meio a essas reflexões escuto: - Mas são pessoas perigosas, agressivas e violentas - branda a senhora no saguão do prédio. Na falta de paredes e um teto, conseguimos observar a violência de um homem que tenta bater no outro; na ausência de privacidade nos deparamos com uma briga verbal; o senhor que passou o dia se esgueirando da GM, senta-se sob a porta de uma loja e como qualquer ser humano, ainda mais sem ter alguém para conversar, desabafa em voz alta sua tristeza, raiva e chateamento pela situação: - Vão tudo tomar no cú, eu mato um por um, não aguento mais, caramba. A senhora do saguão do prédio não precisa se preocupar de ser classificada de violenta, a privacidade da sua casa impede das pessoas ouvirem alguma ameaça, ofensa ou coisa pior verbalizada em seus aposentos.
 É no viver (?) automático que vamos perdendo a nossa humanidade; é na falta de diálogo que os laços comunitários vão apodrecendo; e a realidade imperiosa de uma sociedade falida que vem bater a nossa porta e lembrar que se não fosse pelos limites burocráticos de um CEP, uma escritura, conta bancária, diploma, paredes e portão, conseguiríamos observar que o mesmo problema que aflige as pessoas em situação de rua, vez ou outra, vem nos visitar dentro de casa. 
 É nessa hora que eu me lembro que preciso cuidar dos pequenos "jardins de gente" que faço parte, de outros não poucos que existem e lutar para fazer florescer outros pequenos "jardins de gente" que previnem o apodrecimento dos laços comunitários. E ter a esperança de quem batalha no mundo das ideias e da prática, de que um dia, a rua apenas seja local de passagem para os seres humanos e não local de "moradia".



Michel Cabral
Rua Conceição (Primavera)

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Assertividade & Convivência

   O que mais eu devo aprender para "crescer"? Pergunta corriqueira na qual uma das possíveis respostas é: aperfeiçoar a forma de se relacionar com as pessoas. Para isso há a assertividade, muito comum nos discursos de empresas e um rico conceito para se refletir na maneira que nos comportamos, expressamos e convivemos.
   A natureza social do ser humano faz com que o indivíduo necessite estar em contato com outros indivíduos estabelecendo vínculos e identidade coletiva. Devido a evolução da espécie ultrapassamos a necessidade básica que corresponde a esfera fisiológica (comida, sexo, água, respiração, sono, sobrevivência) e atingimos o patamar da necessidade de Realização Pessoal, que engloba pertencimento a um grupo, aceitação dos pares, reconhecimento e estima dos outros, criatividade, uso de funções psicológicas que nos auxiliem a lidar com a realidade. Percebe-se no desenvolvimento e na satisfação a presença de outras pessoas. O autor desse texto só conseguiu chegar nessa reflexão porque antes houve uma mãe que conversou, uma professora que ensinou, uma vizinha que aconselhou etc. Ainda que fruto de uma ação solitária (de redigir o texto agora de madrugada) houve relação interpessoal.
   Dessa forma a qualidade dos nossos relacionamentos funciona como um termômetro do nosso desenvolvimento enquanto gente; estamos estagnados ou em um processo de transformação? Diante disso precisamos pensar em como cuidamos de nossa convivência: ignorando, mantendo uma postura agressiva/violenta ou nos comportando assertivamente?
    Assertividade é um comportamento que engloba a forma como nos relacionamos, nos expressamos e de como cuidamos de nós. É ser adequado e respeitoso no contexto na qual nos encontramos; é o esforço individual para estar no mundo com o outro de uma maneira harmoniosa e construtiva. 
   Tarefa difícil em tempos de opressão e capitalismo selvagem, onde vale o lucro acima da vida e o individualismo como forma de viver em sociedade. Mas é justamente por esse cenário que torna-se urgente buscarmos ao final de cada dia refletir sobre como tratamos o outros e junto com o despertar do dia seguinte, procurar fazer diferente, agregando riqueza (além do material) à nossa convivência.
   É essencial cuidarmos da convivência diária, pela nossa saúde e vida. Tão importante quanto fazer novos colegas e amigos, é fundamental mante-los, por isso o tema aqui refletido.
   Por fim, para ampliar o pensamento sobre a assertividade, alguns saberes e práticas precisam ser cultivados:
  • Trabalhar a expressão corporal e a tonalidade da voz, pois um corpo em descompasso com uma frase, gera prejuízo
  • Criar estratégias para lidar com as emoções, pois os sentimentos podem trair nossas intenções e projetos
  • Desenvolver a escuta como canal de compreensão do outro
  • Conhecer mais a si mesmo
  •  Buscar pensar em meios para fortalecer as relações humanas
Existem mais saberes e práticas na cultura que cada um se encontra, por isso o objetivo principal do texto é trazer a tona a discussão sobre Assertividade e comentar sobre alguns caminhos. Agora cabe a você encontrar mais rotas...


Michel Cabral
Rua Conceição, 20 de Outubro de 2016 (Primavera)

domingo, 16 de outubro de 2016

Conhecer a si como parte da descoberta existêncial

   Uma volta pela cidade, acesso à internet ou tempo em frente a TV e logo nos deparamos com o anúncio de que é necessário conhecer e ter um conhecimento, que na maioria (senão em todas as propagandas) é representado pelo conhecimento oferecido por instituições privadas. Faça faculdade disso, curso daquilo, aprenda caso contrário você não tem colocação no mercado etc são ideias divulgadas com tamanha naturalidade que geram um certo pensamento e sentimento na população.
   Primeiramente alimentam o conceito de que educação é restrito as instituições; segundo de que o saber precisa ter utilidade para o mercado; e por ultimo rejeitam uma necessidade, que ao meu ver, é primordial para as pessoas em suas vidas, que é o do autoconhecimento. Vou refletir as três dimensões que apontei mostrando as causas e implicações para a vida cotidiana.
   Difundir que a educação é limitada a quatro paredes, a uma diretriz curricular ou mesmo a um diploma, ignora o fato de que a educação é essencialmente social e está presente nas relações humanas, assim nos mostrou Vigotski em seus estudos sobre o desenvolvimento humano onde a cultura transforma o organismo em pessoa, tendo um processo de aprendizagem vivo; Paulo Freire ressaltou a função social quando nos auxiliou a pensar em uma educação presente na comunidade (daí a educação popular). Reduzir o conhecimento a instituição apenas atende a ânsia do capital em torná-la mercadoria.
   Quando se associa a ideia de que o conhecimento apenas serve ao mercado, aniquila o seu potencial de transformação dos indivíduos e da própria sociedade. Podemos pensar no idioma português na qual aprendemos ainda pequenos com as pessoas próximas (família, comunidade) e aperfeiçoamos no ambiente escolar, sendo útil na nossa vida diária para nos relacionarmos ou mesmo para pensarmos e também no mundo do trabalho. Pela própria força esse saber não se restringe a um campo. O conhecimento precisa ter sentido em nossa vida em geral e não apenas em um segmento, esse é o problemático do capitalismo que busca reduzi-lo a uma área, dessa forma empobrecendo a pessoa que o assim faz.
   E não mais importante, mas por ultimo, o autoconhecimento é desconsiderado. Quantas vezes ouvimos alguém falar da importância de conhecer a si mesmo? Voltar-se para dentro buscando entender-se , compreender sua história de vida, seus sentimentos, sonhos etc é relegado a um papel menos importante ou não é discutido pela sociedade.
   Como poderei conhecer a história de uma cidade, o saber de um instrumento musical ou os segredos de uma operação matemática, se antes, não conheço a mim mesmo? Não sei o que pode me motivar a estudar, não sei quais são meus sentimentos sobre essa cidade, desconheço em quais sonhos poderei aplicar a canção que vier a criar, ignoro os segredos que fizeram eu ser eu, sou em ultima instância alguém que quer conhecer o externo desconhecendo o interno.
   Grande risco de numa empreitada como essa minha pessoa se perder pois deixou de visualizar o mapa de si; se abater pelos desafios (que são naturais) pois não sabe de sua própria história de quedas e superações; ou mesmo confundido por um sentimento que rompe a resistência do seu olhar-se para dentro.
   Precisamos continuar procurando aprender e saber mais, participar de processos educativos, dentro e principalmente para além das instituições. Resgatar o sentido original do termo educação que remonta as comunidades primitivas. Querer conhecer o mundo em comunhão com a busca de conhecer a si mesmo!


Esse foi um pequeno ensaio sobre o saber, conhecimento, autoconhecimento e educação popular. Algo feito com a simplicidade de um ser humano contente por estar nesse mundo com seus prazeres e dores.




Michel Cabral
Rua Conceição, 16 de Outubro de 2016
Domingo à noite (Primavera)